07 setembro, 2007

Ela sorri.

Ela sorri. Não de alegria, apenas sorri. Depois das contas pagas, das malas prontas e do adeus imaginado. Fazer o que além de sorrir?

Sabe tudo que deixou por fazer e não se importa. Prefere acreditar que nada pode ser resolvido, apesar das saídas já pré-determinadas. Planos e mais planos empilhados, deixados pra depois – sua especialidade. Já não se perde em pensamentos a respeito de nada. Um semi-alivio, uma semi-saída: a fuga.

Culpa? Que culpa? Nunca. Talvez depois de uns goles de vinho barato, pense a respeito. Mas há sempre o dia seguinte, o porre. Uma aspirina, um bom caldo de ovos quente. Hão de curar.

Amigos, amigos. Esses estão por todos os lugares e em lugar algum. Pouco importa, tudo ficou pra trás. Talvez alguém perceba que as cortinas estão fechadas, que falta aquela que diz saber tudo. Quem sabe um ou dois finjam se importar e a procurem. Bobagem, pura bobagem. Ninguém esta muito preocupado com isso. Eu não estou.

O sorriso se desfaz num instante. Cadê o táxi, aquele maldito táxi que nunca chega? E as plantas, quem vai cuidar delas? Talvez deva ficar. Quem liga pra plantas inúteis?

Buzina. Táxi idiota, finalmente chegou. A chave? Ela sempre esquece das chaves em qualquer lugar. Da última vez, encontrei-a no refrigerador. Sorri sozinha enquanto anda pelo apartamento.

Chaves, passagem, cigarros, bolsa, mala. Aeroporto, por favor. O motorista gordo de mãos pequenas nada diz, apenas segue. Ela percebe pela janela em silêncio que tudo continua exatamente igual. Como nada muda depois da minha decisão? Tanto tempo, tantas noites em claro, tantos diálogos inúteis e nada muda? Do lado de fora pessoas e mais pessoas caminham, cantam, sofrem, choram, amam. E ela ali, estática. Vendo tudo de camarote. Vendo nada.

O senhor tem troco pra cinqüenta? Obrigada. Pessoas, mais pessoas. Será que devo mesmo ir? Talvez ele apareça com aquela camisa, aquela camisa colorida ridícula. Talvez ele apareça com aquela camisa colorida ridícula e com aquelas desculpas ridículas e com aquele perfume e com aqueles elogios ridículos e com aquele jeito único de dizer que tudo vai ficar bem. Ridículo.

Poltrona 27, poltrona 27, poltrona 27. Janela, finalmente. Ainda bem que é noite, não preciso conversar. Depois de tanto tempo, sabe fingir o sono como ninguém. Aeroporto, mais pessoas, outro táxi. Será que devo continuar com essa loucura? Agora está feito. Mas e as plantas? Aquela tulipa branca, tão linda que é! Só poderia ser roubada, por isso vingou. Quem liga pra tulipas brancas, lindas e roubadas?

A cidade parecia a mesma, mas estava diferente. Algo nos prédios, nas pinturas, no calçamento, nas pessoas. Você é turista? Nesse quarteirão tem uns bares bons, coisa de bacana. É aqui, obrigada. Pra que dar explicações a um taxista desconhecido? Nem sei bem de onde sou, apenas pensa.

Da antiga casa quase nada mudou. O portão ainda faz aquele barulho doído, como se fosse rasgar. A campainha funcionou por pouquíssimo tempo, ninguém sente muita falta. Com esse portão! Quem precisa de campainha? Sorri outra vez.

Alguém abre a porta. Abraço, lágrimas, abraço, surpresa. Posso ficar por um tempo? Café, risos, cigarros, fumaça, cinzas, mais café. Sentia-se protegida. Em vinte e cinco anos, tudo continua aparentemente igual. O mesmo som de risada, o cigarro queimando no dedo e alguns poucos tragos. Nos olhos conseguia se reconhecer, as vezes. Não pelo castanho-brilhante-tímido, por algo mais.

Ele fala que o eletricista queimou a sua TV, que já não pode mais ver o jogo de domingo e que se contenta em ouvir pelo rádio. Fala que as baratas estão invadindo a casa e que não há nada que se possa fazer. Ri dos guris, das suas músicas bobas, só falam de revolução e algo assim.
Ela ri, apenas ri.

Não se concentra em palavra alguma, e sim nos movimentos. Nos dedos, nas rugas que não conhecia, naquela mancha na ponta do nariz. A voz, aquela voz. Vinte e cinco anos e aqui estou. A mesma voz, o mesmo sorriso, a mesma mancha.

Seu quarto esta trancado, tem muito mofo por lá. O sofá é uma beleza, amanhã a gente faz uma faxina. Fala depois de um longo trago, com um quê de preocupação. Longo abraço, silêncio. Ele sabe que não deve perguntar. Amanhã conto-te tudo, com detalhes. Não se assuste com possíveis gritos, esses vizinhos são loucos. Boa noite, minha pequena.

Beijo na testa, travesseiro macio, vizinhos loucos, “minha pequena”. Era tudo o que eu queria, sim. Ao menos por hoje.

E mais uma vez sorri. De alegria? Certamente. Vinte e cinco anos depois, ainda sou pequena. Longe das cortinas fechadas, da tulipa roubada, da camisa ridícula, daquela que diz saber tudo. É pequena, sou pequena. Talvez cresça, vou crescer. Não agora.

Adormece.