15 dezembro, 2009

Clichês sem cor

Pensava muita coisa sozinha em casa a noite, especialmente ao olhar pela janela todos aqueles carros, luzes e encontros. Depois de um dia inteiro de pressa, telefonemas e caminhos, a vista da vida noturna a distraía e confortava, como se mostrasse a existência de algo além do tédio e silêncio do apartamento apertado – interrompido ora pelas buzinas de fora, ora pela TV esquecida no canto da sala.
Gosta de estar na companhia do seu gato, o Felix. Nome bobo e clichê, como tudo ao seu redor: Poulaim, Kubrick e Almodóvar na estante da sala, vistos e revistos freqüentemente. King, Lispector e Hilst sempre à mão, perto do sofá, na mesinha onde descansavam os pés durante a leitura.
Tons pastéis nas paredes, numa palidez sufocante quebrada por copias de Picasso penduradas no pequeno corredor que avistava do sofá, por onde passava exausta da vida lá fora, a caminho da cama – enorme, fria e desarrumada, onde recarregava suas energias para mais um dia de escravidão, como costuma dizer.
No quarto não havia nada que lembrasse os sorrisos, abraços e noites em claro de outrora. Tampouco haviam rastros dos cinzeiros dele no chão da sala, da escova de dentes azul perdida na pia do banheiro e dos litros d’água vazios deixados na geladeira. Nem mesmo as fotos com provas de amor, declarações escritas com batom no espelho da penteadeira e recados com frases como ‘eu te amo’ escondidas propositalmente entre as roupas nos armários e presentinhos bobos na gaveta do criado mudo do lado direito da cama, onde ficam o despertador e o abajur.
Tudo fora destruído, queimado, rasgado, na tentativa frustrada de recomeço. Porém os rastros sobreviventes são os que ferem mais. A lembrança do cheiro daquele perfume de farmácia que contaminava todo o ambiente pálido e sem vida daquele pequeno apartamento, no centro da cidade. O canto desafinado que soava do banheiro, com músicas bregas cantadas como numa serenata nada proposital. O som da respiração dele, tão próxima e tão sua, durante o silêncio daquelas longas madrugadas.
Existia vida naquele pequeno espaço de concreto, dividido por paredes pálidas decoradas por cópias coloridas de Picasso. Os clichês sempre presentes eram belos, cheios de fragrâncias, sons e preenchiam o ambiente. Agora é tudo vazio, a vida lá fora a distrai, na esperança de um telefonema, quem sabe – sem admitir, claro.

Um comentário:

Fernando Ralfer disse...

aaaaai que bonito, adorei as referências.

bjorks